segunda-feira, 5 de março de 2007

"A vitória do "sim" radical sobre o moderado é o exemplo acabado de que a revolução acaba sempre por engolir os seus filhos"

por Tiago Duarte, 03.03.2007

"Tantas vezes os defensores do sim repetiram que o que estava em causa não era o aborto livre a pedido da mulher que acabaram por convencer a maioria dos eleitores que foram votar. Foi aliás a ideia de que o aborto era um mal, que se combatia melhor no Serviço Nacional de Saúde do que no circuito do aborto clandestino, que levou a considerar a defesa do sim mais moderada do que em 1998, já que agora se reconhecia a existência de uma vida intra-uterina diversa da da mãe, razão pela qual também os defensores do sim se afirmavam contra o aborto, mesmo legal, pretendendo evitá-lo, ainda que não através da criminalização.
A este propósito era sempre citado pelos defensores do sim o modelo alemão, como um bom exemplo a seguir, sendo que o que consta no § 219 n.º1 do Código Penal alemão é que, o aconselhamento serve a protecção da vida que está por nascer. Deve orientar se pelo esforço de encorajar a mulher a prosseguir a gravidez e de lhe abrir perspectivas para uma vida com a criança. Deve ajudá la a tomar uma decisão responsável e em consciência. A mulher deve ter a consciência de que o feto, em cada uma das fases de gravidez, também tem o direito próprio à vida e que, por isso, de acordo com o sistema legal, uma interrupção da gravidez apenas pode ser considerada em situações de excepção, quando a mulher fica sujeita a um sacrifício que pelo nascimento da criança é agravado e se torna tão pesado e extraordinário que ultrapassa o limite do que se lhe pode exigir.
A verdade é que, até à vitória do sim, não se ouviu uma voz, uma só, a dizer que o aconselhamento prévio obrigatório era humilhante para a mulher ou que a tentativa de a dissuadir a praticar um aborto fosse estigmatizante. Bem pelo contrário. O coro estava bem afinado e cantou a uma só voz a música previamente ensaiada. O aborto não é livre, o aborto não é um direito, o aborto é um mal foi o refrão repetido e trauteado um pouco por todo o país.Onde estão agora esses tenores? Onde estão esses protagonistas do sim moderado? Ou, outras palavras, onde estava Alberto Martins? É inquietante verificar como a vitória do sim levou a que logo começassem a cair as máscaras dos que se tinham fingido moderados, iniciando-se a campanha de "trotskização" dos verdadeiros moderados, que nunca mais apareceram. Dão-se alvíssaras a quem encontrar, nos dias que correm, os protagonistas do sim moderado, de Maria de Belém a Oliveira e Silva.
Afinal o aborto tem mesmo de ser livre, para não se desrespeitarem os resultados do referendo, dizem agora os que andaram calados durante a campanha. Afinal o aconselhamento tem de ser facultativo, neutro e não directivo, não podendo ter por objectivo tentar demover a mulher que queira fazer um aborto. Afinal o aborto é mesmo um direito da mulher que não pode ser condicionada de forma nenhuma, dizem os que o negavam ontem. Só não se percebe porque é que o próprio período de reflexão não é também facultativo, para não estigmatizar a mulher face aos actos médicos não sujeitos a tal retardamento.
É preciso dizer que o que se está a passar assume os contornos de uma autêntica burla política, sobretudo para os que acreditaram no que lhes foi dito vezes sem conta e acabaram por votar sim. É que para os defensores do não qualquer lei que venha a ser aprovada e que permita à mulher decidir livremente sobre a vida do feto será sempre uma má lei, estando em causa apenas (e não é pouco) procurar o mal menor. São, pelo contrário, os defensores do sim moderado, agora amordaçados ou sequestrados, os verdadeiros enganados nesta história.
A vitória do sim radical sobre o sim moderado é o exemplo acabado de que "a revolução acaba sempre por engolir os seus filhos". À frente vão os românticos, os ingénuos, os bem-intencionados, os compreensivos, os verdadeiros e os puros. Depois, aparecem os poderosos, os calculistas, os falsos e os dissimulados. Terá de ser sempre assim?"
Professor de Direito Constitucional, UNL

2 comentários:

solitarioh2005 disse...

Veja-se uma das razões para votar sim , publicitada pelo proprio sim :

[i]" Porque o direito à maternidade consciente e à saude reprodutiva são direitos fundamentais.[/i]

A chamada saúde reproductiva inclui o direito ao aborto segundo wikipedia.

Assim sendo , pelo menos nas entrelinhas, o sim foi claro.
Desejava-se reconhecer o direito ao aborto livre.

E foi o que aconteceu

João Pedro Neto disse...

Caro solitárioh2005:

Obrigado pelo seu comentário.

2 perguntas simples (espero...=:

1- Onde vê na frase " Porque o direito à maternidade consciente e à saude reprodutiva são direitos fundamentais" o reconhecimento do direito ao aborto?

2- Mesmo que dissesse, desde quando o wikipedia é a fonte do que certo ou errado?... se a sua vida se rege pelo que diz o wikipedia, apresento-lhe os meus sentimentos e os sinceros desejos de melhoras.

João Pedro Neto